Resposta a perguntas de leitores
Livro de dois anos pra cá que você gostaria de ter escrito.
Infelizmente de dois anos para cá li quase que exclusivamente gramáticas e manuais de escrita. Li pouca literatura. Uma pena. Durante a escrita do último livro, entre 2019 e 2022, percebi que seria difícil ler prosa ficcional. Me atrapalhava e eu, talvez por estar escrevendo o primeiro romance, tendia a mimetizar o estilo dos escritores. Três respingaram em Dia um, acho eu. Karl Ove, John Williams e Ben Lerner.
Enfim, desde que entreguei Dia um li alguns poucos livros dos quais gostei. Posso citar Meus dias com os Kopp, da Xita Rubert, e O deus das avencas, do Daniel Galera. Mas não são livros que necessariamente gostaria de ter escrito. Acho que eles – autores e livros – têm uma onda própria e parte da graça para mim é também lidar com aquilo que eu não faria ou tampouco pensaria.
Mas para não ficar sem resposta: dos livros que li nos últimos cinco anos, vá lá, eu gostaria de ter escrito Stoner, do John Williams, porque é o livro perfeito – estilo, progressão, ritmo, inventividade, “moral” (Stoner é uma mistura de Marco Aurélio e Bernardo Soares, especialmente no estoicismo ora latente ora evidente) – e não seria mau escrever o livro perfeito.
Lugar mais estranho de onde tirou inspiração.
Sou bastante cético, então não me desce bem achar que atraio coisas. Dito isso e tendo isso como ponto de partida, me sinto um supremo para-raios de maluco. Muita coisa estranha acontece comigo, e eu mal saio de casa. Elisa diz que é porque sou observador et cetera, mas muitas vezes estou muito distraído, ou com sono, ou apenas vendo Largados e pelados quando o telefone toca de madrugada e, enfim, acontece aquele trote do penúltimo capítulo de Dia um – e aqui me sinto obrigado a dizer que não, nem todas as histórias do livro aconteceram comigo, que muitas histórias são inventadas, mas, enfim, essa específica do trote me sinto confortável para dizer que aconteceu mesmo e que para mim é a única piscadela que dou para o leitor (gesto que relutei em fazer mas que, em nome de algo maior, fiz). A piscadela é nesta passagem em negrito:
Na manhã seguinte, sua mulher pergunta se você estava falando com alguém durante a madrugada. Ela ouviu sua voz e não entendeu nada. Você conta a história. Ela olha para você durante o tempo de um frame, abaixa a cabeça e ri para si mesma enquanto, com mínimas batidinhas, abre com a colher uma fenda na casca do ovo quente.
Só espero que você não coloque isso num dos seus livros, ela diz, ainda duelando com o ovo.”
A pergunta foi sobre “inspiração” e eu não consigo pensar em inspiração como nada mais do que essas coisas estranhas que acontecem com a gente. Mas sei que pode ser algo maior, cintilante, iluminado. Não me orgulho em dizer que funciono bem quando bebo um pouquinho, mas cabe dizer que parte da “inspiração” me ocorreu menos sóbrio. O lugar mais estranho de onde ela vem pode ser portanto quando estou fora do meu estado de consciência normal. Não estou bebendo mais, então tenho tentado encontrar essa inspiração radiosa na atividade física frenética e diária. Tem sido uma busca edificante, por assim dizer.
Já sentiu dor nenhuma?
Passei um tempo pensando se essa pergunta era referência a algo que eu já tinha escrito, sei lá, de algum modo parece uma citação. Caso não seja uma citação, caso seja apenas uma pergunta mais genérica, a resposta é sim, claro que já não senti dor nenhuma. Imagino também que aqui a referência seja à dor psíquica, certo? Algum tipo de sofrimento. E, sim, muitos dias passam muito bem, são dias calmos. A única coisa de que preciso é calma. Se eu me sinto calmo e o entorno está calmo então está tudo bem. Como disse na resposta anterior, o exercício físico ajuda muito não apenas na busca de inspiração mas também no encontro da paz. Por alguma razão, e outro dia vi um vídeo interessante desdizendo a endorfina, ou melhor, dizendo que não seria ela a responsável pela sensação de bem-estar pós-exercício – já que ela não ultrapassaria a barreira hematoencefálica que protege nosso cérebro de um sem-número de substâncias no nosso sangue –, e sim os canabinoides endógenos (os produzidos pelo nosso corpo), especialmente aqueles que se ligariam aos receptores CB1 e CB2, enfim, por alguma razão – talvez os canabionoides – eu me sinto muito bem, e feliz, e em paz quando caminho voltando da academia para casa à noite, na última esquina, na calçada já perto de casa. É uma hora muito importante do dia para mim e eu tendo a pensar, quando estou vivenciando esse bem-estar, que eu devo me lembrar desse sentimento, reter essa sensação, para quando a vida ficar mais esquisita; como se fosse um farol de lucidez que construímos no passado, uma memória que pode nos auxiliar e resgatar no presente.
Luka MVP?
Essa pergunta é de quem sabe que eu amo basquete. Vale contextualizar: Luka é o Luka Dončić, esloveno prodígio e um dos melhores, se não o melhor, jogador da NBA atual. Ele é armador do Dallas Mavericks e chegou à NBA em 2018. No entanto, desde os 15 anos já dava sinais de que seria um jogador sobrenatural. Foi MVP (Most Valuable Player) da EuroLeague pela seleção da Eslovênia aos 19 anos e já nessa época era o principal jogador do Real Madrid. O caminho natural de um cara como Luka era a NBA, a melhor liga de basquete do mundo. Ele fez o esperado. Na primeira temporada ganhou o prêmio do “novato do ano” e fez parte da seleção de melhores jogadores de 2018-2019; esta última láurea é exclusiva de jogadores como Lebron James. Luka, nos poucos anos de NBA, já tem números análogos aos de Lebron e Michael Jordan ou até melhores que os deles no início de carreira.
Um detalhe sobre Luka é que ele é, à primeira vista, hum, como dizer, bom, ele é meio gordinho para os padrões atléticos da NBA (ou de quase qualquer esporte). Quando está com a bola, parece mais lento que os demais jogadores. Ele tem uma leitura de jogo muito particular, como se enxergasse a quadra e entendesse a melhor jogada ligeiramente antes dos marcadores. O ritmo dele não precisa ser frenético ou agressivo. Ele é alto para um armador (2,01 metros), e isso lhe dá visão destacada da quadra. É extremamente habilidoso no quique e no drible, o que os americanos chamam de “handle”, e dá passes tão extraordinários que acabou consagrado com a alcunha de Luka Magic.
Apesar de ser de fato mágico, Luka joga a maior parte do tempo de modo muito normal. É como um adolescente quicando a bola de basquete no colégio. Nada é exatamente majestoso, até que é. Além de ser meio gordinho, ele curte uma cervejinha e um insuspeitado e cafona narguilé. Essas características, somadas à forma como joga, conformam a aura comezinha de Luka. Ele poderia ser nosso amigo grandão do colégio que, infelizmente, não veio a vingar em nenhum esporte e por isso vai ser obrigado a dormir em camas de tamanho normal e tomar banho em chuveiros para pessoas medianas.
Este é o maior apelo de Luka e de todos os esportistas pelos quais sou encantado: estar na fronteira entre a absoluta normalidade e o inalcançável olimpo.
Meu jogador predileto é o Stephen Curry, um magricela de 1,88 metros para quem já escrevi até um poema. Ele já foi acusado de “arruinar o jogo”, porque todos os jovens jogadores tenderam a imitá-lo, ou seja, começaram a arremessar a bola de qualquer distância. Curry é considerado o maior arremessador que o jogo já fez. Ele tem uma mecânica própria, soltando a bola de modo mais veloz e numa parábola maior que a média dos outros jogadores. Curry é muito carismático, educado, simples, engraçado. Foi campeão quatro vezes, feito para poucos. A última vez já mais velho, um título cujo quarto jogo da final se tornou o icônico “Jogo 4 do Curry”. Vira e mexe vejo os melhores momentos dele nesse jogo. É incrível.
Enfim, todos querem ser como o Curry porque o Curry faz crer que todos podem ser como ele. Essa é a mágica do negócio. O avesso, a meu ver, do ensaio do David Foster Wallace sobre Roger Federer, no qual Wallace descreve a experiência do jogo de Federer como divina e inalcançável. Além de discordar – acho que Federer está no time “gente como a gente” de Curry e Luka –, não entendo exatamente a graça dos deuses, ou melhor, a graça em enaltecer deuses. É como aqueles shows em que colocavam a cantora num trono gigante já no final da vida ou os aplausos merecidos, mas reiterativos e convenhamos já muito bem ouvidos ao longo de toda a longa carreira, ao grande gênio da música brasileira. Entendo o aplauso, eu aplaudiria, mas não entendo a graça do aplauso, tanto para quem aplaude quanto para quem o recebe.
Eu sei que poderia desenvolver mais o raciocínio e teria até contra-argumento, mas vou deixar como está.
Me lembro de um amigo que fez um perfil do Eurico Miranda e uma das diretrizes, não sei se partiu da própria revista ou dele próprio, era tentar humanizar o Eurico, de forma que aquela imagem do Poderoso Chefão de São Januário se misturasse a aspectos mais mundanos e, com sorte, humanos. A maldade já era dada, sabida e consabida de antemão, afinal.
Outra característica de todos esses esportistas tão normais quanto anjos caídos é o fato de serem muito decisivos, o que no basquete chamam de “clutch”. É fazer o que tem que ser feito na hora de mais pressão. Muitos deles atuam melhor na hora em que “está valendo”. Sou fascinado por esse tipo de execução sob grande pressão. Para mim todo piloto de avião nasceu clutch.
E, sim, acho que o Luka tem que ser o MVP este ano, embora o meu MVP, de qualquer temporada, vá sempre ser o Curry.
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