Lost, Lost, Lost
Diante da sinusite que assola o Rio de Janeiro, meus amigos, os filhos dos meus amigos, as escolas dos filhos dos meus amigos, a Smartfit e a mim, apenas hoje consegui me levantar para resolver obrigações não burocráticas e laborais, como esta newsletter. Não quero deixar de enviá-la semanalmente, é um compromisso comigo mesmo. Mas acho que não escreveria decentemente algo novo agora. Estou inexpressivo. Aliás peço desculpa pelo reenvio do último texto, foi meio sem noção e não vai se repetir. Odeio profundamente não exatamente a incorreção gramatical, mas a falta de clareza de espírito. A primeira versão do meu texto anterior estava muito ruim, e tive que fazer uma errata, embora Elisa tenha insistido para deixar para lá. Não consegui.
Tem um texto meu do qual gosto. Foi publicado no Globo em 2018. Acho que pouca gente leu. Fala um pouco da minha relação com a correção da escrita, meu gosto pelas gramáticas, meu entendimento das supostas regras do português. Até hoje é um dos textos com mais "clareza de espírito" que julgo ter escrito.
Certamente voltarei às gramáticas nesta newsletter. Deixe-me apenas ficar bem dessa sinusite árida e eucalipta.
Ah! Também pretendo falar em algum momento do meu gosto por revisitar o que já produzi, especialmente vídeos-diário que gravei por muito tempo na tentativa de imitar o Jonas Mekas, cineasta que filmava de modo frenético e aleatório, ou falsamente aleatório, a própria vida e editava muitos anos depois as imagens dessa vida que quase não era mais dele, pois não era mais ele.
Ao reler estes diários já não sei se se trata de verdade ou ficção. Tudo retorna com a nitidez de um sonho ruim que te faz saltar tremendo da cama; leio isto não como minha própria vida, mas como a vida de outro, como se o sofrimento nunca tivesse sido meu. Como poderia ter sobrevivido? Devo estar lendo sobre a vida de outro. (Jonas Mekas, em I had nowhere to go)
Mas aqui já começo, para variar, outro assunto, e não pretendo ir por essa direção hoje. Segue o texto prometido:
Uso da língua dobra os manuais
Escrevo poesia. E também letra de música, roteiro, prosa, textos jornalísticos. Escrever é meu ofício, então é natural que eu fique atento às discussões que acontecem ao redor da língua. No fundo, acho um gesto de cidadania estar atento ao idioma.
Enquanto gramáticos execravam e chamavam de gerundismo o “vou estar enviando”, linguistas como o Sírio Possenti tentavam entender por que aquilo estava sendo falado. Uma das conclusões a que Sírio chegou foi que o gerúndio, nesse caso, estendia uma ação que era para ser imediata — daí a adoção em massa por serviços de telemarketing. A língua estaria entregando uma coisa bem brasileira — o adiamento de tudo — e apresentando uma nova solução de polidez. O desagradável “isso vai demorar” substituído pelo auspicioso “isso vai estar sendo enviado”. Eu me alinho aos linguistas mais progressistas, aqueles que entendem que a língua é viva, que certo e errado é apenas convenção de gramática normativa, um manual de bom costume. É importante ter bom costume, mas mais importante é saber o seu porquê.
Não tenho certeza se conscientemente já incorporei alguma mudança lexical ou sintática no que escrevo. Acho que é um processo mais natural. Os modernistas, Mário de Andrade especialmente, brigavam pela colocação do pronome à frente do verbo, a próclise. É de fato muito mais coerente com o modo de falar brasileiro — nossa dicção, estilo, lógica. Mário de Andrade conscientemente jogava o pronome para o início da frase. Eu simplesmente o coloco, sem pensar muito. Mas é certo que só faço isso porque sujeitos como Mário de Andrade se rebelaram contra a gramática portuguesa do início do século XX. Até hoje nos manuais é ensinado que não se deve começar frase com pronome átono. Isso não faz mais sentido.
Caetano canta: “Quando eu chego EM casa nada me consola”. Teoricamente é uma regência condenada. No entanto, no dicionário mais vitorioso de regência verbal, o do Celso Pedro Luft, está lá como exceção: chegar EM casa (e não chegar A casa). Então pode? Não pode? Quem disse que pode? Eu confio no Caetano, no Bechara, no Luft, no Houaiss, no falar do povo ou na minha intuição? Me pergunto mais: por que uma chancela gramatical é tão importante? Que poderes estão em jogo? Se houver poderes, e há, temos que analisá-los, relativizá-los, em conformidade com as mentes mais abertas. Afinal estamos em 2018 e não deveríamos precisar travar as mesmas batalhas que os modernistas.
A língua é, repito, um organismo, e o uso é imperioso para que as palavras continuem vivas. Desde que começamos a falar “presidenta” a palavra se tornou menos estranha. Assim deve ter sido com todos os postos de trabalho femininos. Descobri há pouco que a palavra “ídola” existe faz um bom tempo, apesar de os manuais a condenarem. Felizmente a versão online dos bons dicionários agora admite “ídola” e outros femininos, como “chefa”. Gênia ainda não. Uma mulher ainda é um gênio, ou “uma gênia!” num tom irônico, como escrevem os bambas.
Acredito que o uso faz a língua. É a língua que sofre pressão das mudanças sociais, e, felizmente, não o contrário, como querem alguns conservadores. Não há como frear, golpear, esse processo de mudança e uso — ele é orgânico. Por mais que os manuais tentem, o uso se incumbe de dobrar os manuais.
Uma percepção: as gramáticas normativas, em quase totalidade, se baseiam em exemplos de livros e jornais. Os jornais têm manuais. As editoras têm manuais. Esses manuais, portanto, servirão, ao longo do tempo, como base para as novas gramáticas. Daí a importância de os editores dos manuais terem a sabedoria de acompanhar a evolução social da língua, nada mais do que estar em consonância com o nosso tempo. Se escrevermos ídola — por que afinal condenar ídola? —, com o tempo, a gramática vai mudar. Basta ver como a normatização da língua funciona.
Defendo a gramática normativa como manual — um importante manual de unificação de ideias comuns —, mas apenas isso. Livros de gramáticos preconceituosos e esnobes (existem muitos) são inócuos. Não se deve condenar previamente nada; ao contrário, é importante tentar entender a razão de cada construção. Uma esclarecedora passagem da antiga e importante gramática do filólogo Rocha Lima: “Cumpre notar que a concordância portuguesa tem caminhado no sentido de restringir cada vez mais os fenômenos ideológicos e afetivos (...) isso atesta a escassez de grandes e audaciosos artistas, que não se arreceiam de transcender limites e esquemas em seus formosos momentos de entusiasmo e de luz.”
É isso, certo? Não nos encolhamos diante de fantasmas normativistas. Guimarães Rosa, um deus neologista, inventou verbos onomatopeicos como "aeiouar" — é a resposta do mato ao vento. “O mato — vozinha mansa — aeiouava.” Lindo. Imagine se Rosa tivesse receios.
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