Deserto de eucalipto seria o título do último livro. Tenho mais de cem arquivos com esse nome. Versões do que seria – eu não sabia ainda – Dia um.
Ouvi pela primeira vez o termo numa reportagem bastante insuspeitada na TV. Deus sabe como eu gostaria de me interessar mais por biomas, macroclimas, ecossistemas, habitats. Por alguma razão sempre tive bloqueio com o tema “meio ambiente” e com aquilo que genericamente é chamado de ecologia.
No entanto a expressão “deserto verde” me pegou, e eu olhei para a tela da TV, aqui em casa, minha culpa, sempre ligada. A jornalista explicava que os desertos verdes eram um tipo de vegetação exótica a determinado solo e ambiente. Por não ser nativa, poderia desequilibrar a biodiversidade, empobrecendo tanto a fauna quanto a flora do local.
Geralmente desertos verdes são monoculturas, commodities agrícolas.
O eucalipto forma um dos desertos mais letais. Multiplica-se rápido, adapta-se a um sem-número de climas. Dessensibiliza o solo em que é plantado, dificultando inclusive possíveis intervenções futuras para recuperar a mata nativa. Precisa de uma quantidade irreal de água para sobreviver. Cada pé engole trinta litros por dia, dizimando rios e nascentes. É não apenas bizarramente inflamável como também um condutor eficaz do fogo, sendo conhecido em Portugal, onde há incêndios infernais, como “a árvore maldita”.
À primeira vista pode remeter a florestas, plantas, vida, mas no íntimo dialoga com a esterilidade da areia.
Forma uma das paisagens mais bonitas que existem.
A beleza e a contradição do nome me fizeram olhar rapidamente para a TV e assistir à longa reportagem. Escrevi à época: a doença do livro é como o deserto de eucalipto. Vamos sendo todos sugados a cada dia, como se vivêssemos numa área de árvores sedentas, fatais. Mas essa vegetação também atrai, é toda simetria, altura, alinhamento, aponta para um horizonte que nunca, nunca chega, nos colocando numa prisão para a qual voltamos por vontade própria, por nos sentirmos acolhidos e por nos reconhecermos ali. Odiamos e voltamos, pois não sabemos afinal para onde mais ir.
Acabou que mudei o nome. Disse a Alice, minha editora, achar que Deserto de eucalipto poderia remontar a uma temática ecológica, e eu, infelizmente, sou meio estúpido para abordar a questão sob esse viés.
Ela sugeriu Dia um. Gostei de cara. Acho sólido, sóbrio, simples. Significa o que é.
De tudo o que li sobre desertos de eucaliptos, sobrou um termo que usei no livro.
A depressão é uma doença sequiosa [cheia de sede].
***
Abaixo um trecho que acabou cortado de Dia um:
***
Você sabe; ela ainda não.
Você se aproxima, põe as duas mãos sobre os ombros dela. Ela gira e olha para cima, com um sorriso desatento de quem foi interrompida. Você olha de cima, suas mãos estão geladas a ponto de você senti-las geladas quando a toca. Você sente o frio na pele dela. Ela sente o seu frio.
Você sabe; ela sabe.
Depois de tantos anos, ela já percebeu, sem que nada ainda tenha sido dito, ela já percebeu que os planos vão mudar mais uma vez.
Às vezes você tem a impressão de que se alimenta como as criaturas daquele livro. Ou, no mínimo, evolui sob a mesma sombra.
*
As férias improvisadas são ótimas. Sua mulher levanta todos os dias com alguma programação, o que lhe dá pouco tempo para dizer não, ou mesmo para flertar com outro pensamento que não seja, ok, vamos viver esse dia bem.
Você está completamente bêbado na Festa dos Santos. Uma banda em homenagem ao Chico Buarque toca numa praça. Sua mulher está num indiano comprando a terceira garrafa de vinho. Onde você está? Hum. Parece a entrada de um prédio muito antigo. Você está sentado na soleira, junto à porta. Sua cabeça está torcida para a direita, encostada no batente frio e mineral da edificação. Você está ouvindo Chico Buarque amparado por uma pedra milenar em Lisboa. Sabe-se lá o que você pensa. Você só quer escrever sobre aquela comunhão.
Como escrever sóbrio sobre aquilo, sobre ser o prédio e ser você ao mesmo tempo? Como escrever sobre estar se sentindo tão bem?
Sua mulher sai da loja. Ela segura com as duas mãos o vinho. Garrafa apertada contra o peito, ela treme de brincadeira. Faz um friozinho à noite, ainda é o começo do verão. Ela dá um saltinho de felicidade genuína, sorri e vem correndo em sua direção.
Você dorme. Não sonha com nada. Tudo está muito vazio, mas seria injusto descrever o que você sente como vazio. Na verdade você não sente. Não há nada, portanto não há nem vazio. É como a morte. Mas você está apenas dormindo.
Seria injusto com a morte compará-la com esse tipo de sono primordial?
Um grito em português de Portugal e você acorda. Tudo está calmo no Jardim da Estrela, onde você e sua mulher fazem o quarto piquenique em menos de um mês. Sua mulher também dormia e também foi acordada. O queijo, o presunto cru, o amendoim com sal e casca, o pão italiano, as azeitonas, a garrafa de vinho vazia, a garrafa de vinho fechada, o Público de domingo, o livro que sua mulher levou, Na baía, um conto da Katherine Mansfield, tudo está no lugar.
Vocês foram ao sono e voltaram dele em segurança.
Uma mulher alta, de cabelo preto e olho azul-escuro está de pé, ao lado de vocês mas sem invadir a grama. Ela fotografa os portugueses com uma câmera analógica, talvez uma Yashica. Nada incomum: apenas um punhado de gente ou bebendo, ou lendo, ou dormindo, ou, a maior parte, sentada sem fazer nada, num momento de lazer e descanso.
Vocês também foram fotografados. Fazem parte da paisagem, o que não deixa de ser estranho. Vocês, como todos ali, são pessoas reais, para todos os efeitos moradores da cidade. Lisboa está mudada. Em outros tempos gente de verdade não seria ponto turístico, algo digno de ser registrado em fotografia. Afinal, pontos turísticos são, quase por definição, anomalias, ideais de extravagância. Quando pessoas normais, descansando num jardim, se tornam pontos turísticos, ou seja, se tornam exceção, é porque a cidade deixou de pertencer aos próprios moradores. Será que foi essa a mudança que sentiu quando decidiu não ficar em Lisboa?, você conjectura enquanto tenta identificar, sem sucesso, a marca da máquina fotográfica da turista. Ela é linda e alta, e não parece ter a mínima ideia de como usar aquele dispositivo antigo, que voltou à moda pelas mãos dos hipsters. Ela não parece hipster.
Antes de voltar ao Brasil, vocês vão à Rua da Bica encontrar uma amiga. Ela é dona de um restaurante sobrevivente. Tudo ali cheira à gentrificação. A Bica, uma rua que já foi tida como bairro, hoje é dominada por ingleses, franceses e brasileiros imbecis; de proprietários a turistas, todos são imbecis e barulhentos.
A amiga de vocês envelheceu. Na época em que moraram em Lisboa ela não estava assim, manca e com um dos olhos mortos, como que cego. De toda modo ela ainda é ela, os reconhece, se surpreende com a visita e celebra, não acredito!
Ei, Ligia, como você tá?, você diz enquanto sua mulher a abraça.
Tudo bem. Há tanto tempo!
Pois é. Estamos de visita. Tudo está tão mudado...
É, esses gajos..., ela diz, apontando com o indicador, de cima a baixo, para a rua, repleta de turistas ensandecidos.
Não é por causa dos Santos?, pergunta a sua mulher.
Não. É assim o ano todo, responde a Ligia. Outro dia um gajo pôs-se em cima do elevador e começou a gritar em inglês. Eu virei-me e comecei a gritar com ele em português. Quem é que ele pensa que é? Filho da puta.
A Ligia ainda é a Ligia. Apesar de tudo, forte.
Quando vocês moraram em Lisboa, comiam duas vezes por semana no restaurante dela; um único e simples prato: salada de grão de bico, ou seja, grão de bico, folhas, cebola, tomate, molho e melão. Dois euros. Uma delícia que vocês importaram para a vida.
O estabelecimento trocou de nome. A decoração está um pouco diferente. Até o balcão mudou de lugar. O banheiro, contudo, está igual, com a irritante privada sem tampa e o charmoso sofá de couro ao lado da pia. Como sempre, a lingueta da porta está quebrada.
Você sai da casa de banho e confere a braguilha. Ela está aberta. Você a fecha com zelo e disfarce. Ninguém percebe a gafe.
Ligia conversa com sua mulher, vou operar a perna em setembro. Caí nessa ladeira, ela aponta para a porta.
Putz!, exclama sua mulher. Como assim?!
Vinha do supermercado e tropecei. Vinha com os sacos na mão e desequilibrei-me. Dei um grande tombo e fiquei com uma hérnia desgraçada!
Que merda, Ligia, você diz enquanto se senta na cadeira.
Acontece..., ela diz.
Chega o prato que Ligia esperava. Uma menina, igual a ela mas mais gordinha, uns doze anos, neta provavelmente, traz arroz, cogumelos, brócolis e bacalhau. Ligia oferece. Vocês aceitam.
Que delícia!, diz sua mulher.
Você assente com a boca cheia.
Se tudo der errado ainda temos isso, você fala por falar, esticando a cabeça em direção ao prato.
Ligia mastiga rápido. Um dos olhos, o cego, mira por cima do seu ombro direto. O olho bom olha o seu rosto. Ela engole com a ajuda do vinho.
Mas também pode correr tudo bem, menino, ela diz. Pode correr tudo bem.
Tenho uma rede social ativa, o Instagram:
https://www.instagram.com/tdscamelo
Saiba mais sobre os meus livros por aqui:
https://sites.google.com/view/thiagocamelo
Leia o último texto aqui.
Esta newsletter é gratuita, mas se você quiser e puder contribua voluntariamente pelo PIX <tdscamelo@gmail.com>.
Obrigado pela leitura!
Andei por horas num deserto desse a trabalho. Não vem um pio de passarinho, nadinha.