Tenho quatro livros lançados. Todos eles foram escritos de modo distinto. O primeiro durante o expediente do trabalho, o segundo na madrugada, o terceiro em horários curtos e aleatórios ao longo de um ano. O último, num intento ao mesmo tempo febril e racional, levou três anos – escrevia em qualquer tempo livre, às vezes em pé no celular dentro do metrô.
Apesar de o tempo e de o método de escrita terem sido portanto muito diferentes entre si, uma característica permaneceu igual quando me propus a escrever um livro: o meu olhar para o mundo mudou, e o mundo mudou por causa do meu olhar. No momento em que me abro para novas ideias, passo a encarar o universo de forma menos estática. Qualquer gesto é matéria-prima, qualquer vento é centelha. Assim, o mundo, dias antes hostil e óbvio, se torna luminoso novamente. E eu fico notadamente mais feliz.
Isso tudo acontece sem que eu precise escrever nenhuma palavra. Apenas a presunção de escrever é suficiente. A melhor parte de escrever para mim é o fato de estar escrevendo: a sensação de estar minimamente no mesmo compasso das outras pessoas e, num momento de sorte, às vezes durante a escrita, às vezes apenas pensando sobre o assunto a ser escrito, conseguir entrever algum tipo de epifania, aquele delírio de potência, um amálgama pouco óbvio de tristeza e alegria, de sono e disposição, que se sente tão poucas vezes sóbrio.
Nos dias seguintes volto ao texto e muitas vezes não entendo bem o que vi naquilo. Como a vez em que o Paul McCartney, depois de uma noite muito doidão, reencontrou o papel em que tinha anotado o sentido da vida. Nele estava a enigmática frase “há sete níveis”.
Essa história do Paul me toca. Acho engraçada e um pouco comovente, aquela coisa meio sem sentido que a gente aprende com Sísifo e a pedra. Não muda, no entanto, a busca por algo maior; no caso da escrita, a busca pela palavra certa, pela frase certa.
Daí me vem a série de conexões meio frouxas que faço a seguir. Me lembrei da ideia que uma vez dei a um amigo – uma ideia para o mundo – de uma aula de escrita criativa em que os alunos teriam que inventar palavras para sentimentos que ainda não têm nome. Roubei a ideia do projeto The Dictionary of Obscure Sorrows, do designer e cineasta John Koenig.
Koenig fez uma série de vídeos e depois lançou um livro com imagens e frases que descreviam uma sensação e revelavam a palavra inventada para essa sensação. A ideia é boa, apesar de os vídeos serem francamente duvidosos, caindo exatamente na armadilha, a meu ver, latente do projeto: confundir uma boa ideia com as intenções edificantes e sentimentais de uma Amélie Poulain dirigindo um comercial de plano de saúde. De toda forma há, como quase sempre, algo a tirar daqui, como o verbete “AMBEBO”, em tradução livre minha:
Uma espécie de transe melancólico em que você fica completamente absorvido em detalhes sensoriais vívidos – gotas de chuva caindo pela janela, árvores altas inclinadas ao vento, nuvens de creme girando em seu café –, mergulhando brevemente na experiência de estar vivo, um ato que é puramente para o próprio prazer.
Outra forma de descobrir palavras novas para sentimentos nem sempre óbvios é buscar pelas listas de palavras que existem apenas em outras línguas. De cabeça me lembrei da muito bem tuitada schadenfreude ou da já aportuguesada serendipity. Me lembrei, é claro, de saudade, mas há debates se é de fato uma síntese portuguesa do sentimento de incompletude melancólica (no alemão seria sehnsucht). Há quem diga, contudo, que cafuné é apenas nosso.
Há dois milhões de anos, conversando com um amigo francês, ouvi que existe uma expressão por lá, e aqui minha memória pode ter sido dizimada pelos benzodiazepínicos, que define “a necessidade de sair da casa dos pais quando se faz dezoito anos e o desejo de dividir o alojamento com amigos”.
Algo assim.
Achei assustadoramente específico. Ao mesmo tempo, pareceu natural que não haja nada próximo no português do Brasil, afinal, no nosso contexto sociocultural, quem teria dinheiro para tamanha aventura?
“[...] ainda impregnados de sono e da expectativa natural que sentimos quando o dia ainda não começou para valer."
A frase acima é de um dos livros da saga Minha luta, do Karl Ove Knausgård. Por alguma razão fiquei um tempo tentando encontrar não uma palavra para essa impressão, mas algo que definisse ao menos de modo mais breve a sensação que o escritor descrevia. Não consegui. Fica a sugestão para o curso de escrita criativa.
A outra sugestão que dei a meu amigo ia no caminho contrário, e talvez isto me interesse muito mais. Me refiro à busca oposta, ou, vá lá, quase oposta, o exercício voluntário de encontrar sensações intraduzíveis e, por serem intraduzíveis, explicá-las com mais palavras.
Diante do buraco lexical inerente à nossa melhor forma de expressão – as palavras rastejam, o pensamento caminha –, por que não tentar se afastar da síntese e caminhar em direção ao acúmulo? É bonito quando há palavras como saudade, mas também é bonito quando não há. Seria péssimo constranger tudo a uma palavra, a uma frase, a um livro. Existe pulsão de vida no excesso, no superaparente: o texto mal traduzido que acrescenta informação e imperfeição pode ser saboroso, as hiperdescrições e a falta de pontuação do Proust, o discurso indireto livre radical da Mariana Enriquez et cetera.
Voltando ao Karl Ove, tão redundante e, por que não, maçante. É a vida.
"[...] ainda impregnados de sono e da expectativa natural que sentimos quando o dia ainda não começou para valer."
Sei lá. Que sentimento é esse, que palavra define isso? Ansiedade, desejo, projeção? Não é bem nada disso, né?
Me vem também aquele cinema de sensações do qual gosto tanto. No qual nada acontece, como reclamou um crítico da Folha nesta semana se referindo ao meu cineasta predileto, o Hong Sang-soo. Não acho que o que ele faz é análogo à palavra perfeita, à síntese de algo. É uma sucessão às vezes muito caótica, como uma lista aleatória, de imagens-sentimento que ora complementam, ora friccionam a própria história, chegando ao ponto de, em nome de uma busca não-dita, o cineasta em mais de um filme precisar recriar novamente a mesma cena, com leves variações.
O inventário de sensações de Hong Sang-soo parece querer apenas despertar novas sensações, sem grande compromisso com a [grande] verdade. É apenas uma isca, algo que pode ou não ser descoberto – um vento que mexe a cortina, desvela e depois esconde uma coisa qualquer.
Eu nutri a ambição de um inventário de ideias e sensações por muito tempo. E as anotei diariamente, fossem em forma de frases soltas, fossem em forma de palavras sozinhas. Fiz isso por décadas e larguei quando terminei Dia um. Visitei as anotações nas últimas semanas em busca de ideias para o meu novo livro. Não entendi metade do que escrevi. Mas consegui resgatar algumas ideias para o futuro. O que sobrou, entre o ininteligível e o que vai para o próximo livro, eu ou apaguei ou publiquei aqui, logo abaixo, nesta newsletter.
Não é por nada senão por odiar jogar ideia fora. Prefiro um pouco de constrangimento a deixar algo morrer. Às vezes não é buscar a síntese, o epítome, a palavra certeira. Às vezes temos que escrever, escrever e escrever. E não é exatamente para entender. É apenas para escrever, e escrever, e escrever cada vez mais.
***
Ideias para o mundo:
– Quase todos os dias vejo uma aurora boreal na televisão, na internet. Não era para ser assim. É um aurora boreal, é muito raro. As pessoas passam anos caçando aurorais boreais.
Parece, no entanto, que basta olhar para o céu e lá estará uma aurora boreal.
– A pessoa que transcreve em tempo real o que a gente lê no closed caption do Jornal Nacional. Mandam o roteiro antes? E quando improvisam? E quando transcrevem narradores de esportes ao vivo, aí não tem como roteirizar? É uma pessoa ouvindo e transcrevendo, como na taquigrafia (pensar mais sobre os empregos escondidos). Que trabalho peculiar.
[Fiz uma matéria sobre um desses empregos escondidos na Piauí. As mulheres que tiram as dúvidas gramaticais enviadas para a ABL.]
– Mulher, Ana, que atravessa paredes, e é todas as pessoas que eu vejo no prédio à frente. Ela é todo mundo.
– Diferença da utilidade dos objetos de fato ou a utilidade criada, imposta. Começar com uma cena de alguém acordando. Escova de dentes, café da manhã, papel higiênico, pensar em todos os objetos que ela de fato necessita ao acordar. Até o ponto em que chega a uma imposição, e não a uma exata necessidade.
Muito melhor, pensar nesses objetos e descrevê-los um a um.
Um clima meio Jeanne Dielman, da Chantal Akerman.
O papel para limpar as lágrimas no consultório do psiquiatra presume que você chore. O extintor presume que haverá fogo (ir pensando nessas coisas em que o valor é inflacionado pelo cinismo ou pela presunção do seu uso).
– Trejeitos de canhotos como os que herdei.
Caracóis cujas conchas espiralam (torcem) no sentindo anti-horário, ou seja, conchas canhotas, com abertura para a esquerda, que ajudam a proteger contra ataques de cobras. Ou caramujos canhotos que se protegem de caranguejos, não adaptados para capturar animais com esse tipo de proteção.
– História que o psiquiatra me contou da moça com TOC que não conseguia parar de contar a própria respiração. Meu deus, que inferno!
– Conto em que um adulto, numa festa, mata a criança de brincadeira, com um revólver imaginário feito com as mãos, polegar e indicador. Mas ele mata a criança e todos da festa de fato param de falar com ela, como se ela tivesse morrido.
– Um pensamento em Lisboa, abril de 2014: você acredita que se você ama a vida, a ideia de estar vivo – que olhada até da esfera mais pessimista é um verdadeiro milagre –, você acredita que qualquer sensação, mesmo a pior dor do corpo ou da mente, tem de ser observada e sentida por um viés otimista (ou, no mínimo, funcional, afinal “vai servir para alguma coisa”). Você acredita nisso?
– O modo como os deprimidos (ou que tais) enrijecem as mãos – rigidez que escorre para todo o corpo, mas tem o ponto de partida nas mãos. Joaquin Phoenix em Amantes, do James Gray.
– Nunca deixei o corpo manifestar todas as emoções. Sentia mas não demonstrava. Rir sem fazer barulho. Sempre tive isso. Por que as pessoas fazem barulho quando riem? Não é necessário. É fisiológico ou é um código social para mostrar ao outro que a risada é real?
– Olhos toldados.
– Selfies matam cinco vezes mais pessoas por ano do que tubarões.
– Houve uma época da minha vida em que eu me sentia feliz apenas por pensar, por ter o sossego de chegar à noite em casa e pensar um pouco, sozinho, isso já me dava paz e certa alegria.
– Usava a palavra tal em vez da tal, como se fosse uma escolha arrogante, quando no fundo a ideia era mesmo dar uma mobilizada no leitor, dar um susto, já que o fluxo de consciência do personagem estava indo para um caminho esquisito. Eu sei o que eu estava fazendo, não foi sem querer. Isso tem risco, claro, mas obviamente foi de propósito. Às vezes é importante jogar uma estranheza para acordar o leitor.
Astuto
Diligente
Turvar
Truísmo
Estoico
Paria
Centelha
Inconsolavelmente
Lívido – pálido
Espasmódico
Destruição iminente
Estultificante – tornar estúpido, tolo.
Ofensivamente sonolenta
“Espaços das três da manhã” (insônia). Você vai ter que abraçar a escuridão do dia.
Estéril
Hipertrofiado – no sentindo de menos maleável, pouco adaptado.
Dor de inferno
– Um pulmão com covid pululou na sua timeline. Parece um mamão podre. Mas não totalmente podre. Daria para comer algumas partes. Apesar disso, o dano foi suficiente para matar alguém. Apesar de ser microscópico, quântico, o câncer, ou a dor, cresce como a falha numa pintura: quanto maior a fachada, maior o dano. Se você olha para cima, a camada de tinta do teto um dia cairá na sua cabeça. É questão de tempo até ela ceder. No fundo tudo começa pequeno e grande como a vida e termina grande e pequeno como a morte.
*
numa sombra pós-nuclear
o contorno é todo o horizonte
cravado em tudo o que há
é tudo
lembrança
*
Cadente
Um homem de passagem
Enquanto a dor e o medo intenso do ano passado se dissipam
Júpiter
– Arco-íris provocado pela própria onda. Ressaca. Onda grande.
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Obrigado pela leitura!
Não sei se é intencional ou não, uma técnica de escrita de escrever.... como se fosse voltado pra si...mas não necessariamente...não obrigatoriamente pensando na construção do texto que chegará para o outro mas a ideia e sensação é essa.
Você escrever seus pensamentos e ser bizarro/engraçado/interessante de como leitora, ler,ler os pensamentos de outras pessoas e se identificar com meus próprios. Será que existe uma palavra pra isso??!
Ver seus pensamentos através dos pensamentos de outros...