Há dois anos não escrevo nada que não sejam e-mails protocolares ou mensagens de WhatsApp mal redigidas por dedos preguiçosos e pouco hábeis. Meu último livro me tirou tudo. Ou melhor, eu dei tudo para o meu último livro.
Nunca sei ao certo responder por que escrevo. Intuo tentar me esvaziar de sentimentos e informações que acumulei de tal forma obsessiva que, caso não organizasse no papel, explodiria.
Há uma analogia melhor.
O pensamento de um obsessivo-compulsivo – meu diagnóstico primário – pode ser tremendamente ruminativo e amorfo, ou seja, nem sempre vem em forma de questões ou anseios (obsessões) que direcionam a tarefas amalucadas (compulsões). Todos os gestos, do pensamento intrusivo à ação inconsequente, podem acontecer apenas na mente, um tipo de manifestação formalmente classificada como transtorno obsessivo-compulsivo puro.
É puro porque prescinde da ação.
O que nunca li, mas sei que existe porque sinto, é que esse transtorno puro pode também prescindir de obsessões claras. A ideia invasiva vem em ondas pouco reconhecíveis, apartadas inclusive de um sentimento-guia; é algo bastante primitivo e difícil de descrever, mas se tivesse que tentar eu apelaria para a imagem de uma chuva de palavras em uma língua que não entendo.
É urgente traduzi-las porque essa ideia emergente me alaga, porque chove forte, porque quanto mais tempo passa mais ansioso fico.
Passo todos os dias ora tentando esvaziar com um balde furado o alagamento ora tentando traduzir as palavras para me esvaziar temporariamente.
No tempo sem a escrita, sinto que traduzo essa angústia grotesca e sem rosto criando obsessões mais reais com as quais lidar. Arrancando-as da minha cabeça e tornando-as matéria.
Por exemplo: estou há mais de um semestre estudando o corpo humano. O quê? Tudo. Por que isso é um comportamento obsessivo-compulsivo? Porque, se eu não estudar, transbordo.
Naturalmente a escolha do tema não vem à toa. O corpo me aflige, e entendê-lo me acalma. Não. Não me acalma. É tênue a fronteira entre me divertir estudando e enlouquecer estudando. Quanto mais estudo mais perguntas tenho. A dúvida é meu inferno.
Eu tento me divertir, por isso tenho uma regra autoimposta e pouco cumprida de não pesquisar nada depois das oito da noite. No momento estudo a respiração humana. Nas três semanas anteriores estudei nutrição. Nos meses anteriores estudei higiene do sono. Há exato um mês fui acometido por um pensamento invasivo péssimo, eu simplesmente não lembrava qual sub-receptor alfa o Zolpidem ativava; é um dado relevante na medicina, porque teoricamente essa medicação tem uma vantagem sobre o Rivotril, que ativa mais sub-receptores e portanto é menos seletivo. O detalhe constrangedor é que eu não tomo Zolpidem, não pretendo tomá-lo, e esse pensamento tragou meu espírito de uma praia suntuosa.
Eu só parei de chorar na escola aos doze anos, quando mudei de colégio. Até então chorava sempre quando não entendia o que o professor explicava. Chorava também quando entendia mas notava lacunas. As lacunas até hoje me atormentam.
Tive vontade de chorar até o último dia de aula da faculdade de jornalismo e, depois, até o último dia de aula da faculdade de cinema.
Já não sinto vontade de chorar quando tenho dúvidas ou enxergo lacunas em tudo no mundo, mas posso ficar muito excitado ou muito nervoso ao me deparar com essas barreiras. Podem me tirar um dia de praia, podem me distrair do assunto mais importante da vida, podem fazer com que vire a noite e perca o sono estudando justamente como dormir melhor.
“Arquitetura do sono” é uma expressão e tanto.
Entender o corpo e cuidar dele é a maneira como estou lidando com esse hiato na escrita. É muito pouco falado como escrever machuca o corpo. Engordei dez quilos na última jornada. Minha lombar terminou péssima. Como escrevia de pernas cruzadas sobre a cadeira, forcei em demasia os joelhos, e logo o joelho bom, o direito, começou a doer. Fiz ressonância e descobri que os meniscos mediais de ambos os joelhos já estavam rompidos. Me lembro de que, enquanto escrevia, cheguei a pensar, foda-se, eu vou morrer mas vou terminar este livro.
Quem morreu no processo foi meu pai. Meu amado pai. Perdi meu pai enquanto escrevia sobre a morte do meu irmão. Isso, sobretudo isso, me destruiu de vez.
“Termine este livro e encerre esse ciclo de dor", meu pai me disse poucos dias antes de morrer.
Não consigo superar nenhuma das mortes da minha vida, mas acho que estou indo bem. Continuo muito angustiado e invadido por uma doença com a qual sei que vou conviver para sempre, mas não me sinto convalescente ou mesmo deprimido.
A ideia de usar essa habilidade cansativa de mergulhar em tudo para cuidar do meu próprio corpo e assim emergir mais forte me parece estar dando certo.
O preço é que me sinto cada vez mais burro. Sei que essa ideia de burrice remete a um conceito de inteligência ultrapassado, que tem a ver com consumir cultura e saber projetar o que é apreendido para o mundo. Tem a ver com um tipo de atribuição utilitarista do que é a subjetividade e do que se deve fazer com o que sabemos.
Além disso, o mínimo que sei é que não é um exercício inteligente separar mente e corpo. Eles trabalham juntos e tudo, tudo, tudo que acontece em um reflete no outro. Sentimento, consciência e corpo estão simbioticamente ligados, numa correlação que é maior do que a causal e, a depender do gosto do filósofo ou neurofilósofo, até dispensa “a realidade” tal qual a nomeamos.
Dito isso, eu tenho me sentido burro.
Meu conhecimento é absolutamente caótico. Não me sinto especialmente culto ou inteligente, e minha vontade atual é francamente continuar estudando o corpo e o bem-estar do corpo enquanto me isolo do mundo barulhento, asfaltado e sudorífero que me tirou tanto nos últimos anos. Mas não posso e pensando bem não sei se quero.
Reconheço meu talento de juntar pedaços de ideias e assuntos que, a princípio, não dialogariam, e daí criar uma imagem, uma cena, um sentimento.
Para fazer isso preciso me reconectar com algum tipo de subjetividade.
Se eu me reconectar com a subjetividade da escrita, talvez consiga traduzir mais facilmente a chuva de palavras do idioma inventado por mim mesmo, talvez consiga investigar de modo mais pacífico as minhas dúvidas eternas, quem sabe até esbarre em algum mistério. E o aceite.
Dependendo da crença moral, religiosa, otimismo, pessimismo, niilismo, organizar o caos parece ser uma boa solução. Não é que seja necessário e temo que ser assim nunca me permita contemplar o mistério e aceitar a incerteza. Mas hoje intuo que isso é o que vai me fazer bem – e intuir agora parece o mais próximo de não-saber.
Poderia escrever para mim mesmo. Mas não suporto a ideia de escrever para ninguém, o que contraditoriamente se choca com o fato de muitas vezes eu não me importar com o que um desconhecido acha do que escrevo. Também se choca com o fato de odiar me expor, de detestar que saibam qualquer coisa sobre a minha vida. E estou aqui de novo falando de mim.
Vou começar assim, assumindo essa incoerência, essa lacuna.
Essa dúvida.
***
Ideias para o mundo: um espetáculo de dança cujo cerne seja o movimento dos órgãos humanos. A ideia mais óbvia é o movimento do coração. Não apenas o tum-tum, mas o modo bizarro como ele se mexe, num compasso de quatro tempos quase assíncrono. Mas todos os órgãos hão de ter um movimento próprio, e teria curiosidade de ver um espetáculo de dança que explorasse, de modo não óbvio, o som e a agitação deles.
Ideias que talvez desenvolva: a necessidade das “novas tecnologias” de preencher o que não é necessário e o que antes era imagem vazia e tempo vazio. O exemplo são as linhas e os pixels falsos do soap opera effect nas TVs modernas e – descoberta recente – o modo fluido e animado das letras do Word, que agora varrem a tela de um jeito limpo e afetado nada parecido com o ritmo que emulava uma máquina de escrever. Isso do Word me causou repulsa tão grande que fui obrigado a mexer nas entranhas do programa para ele voltar a ser como era antes. Tanto as TVs quanto o Word me remeteram à ideia de “pele teflon”, que conheci lendo o sociólogo português Hermínio Martins para uma entrevista na Ciência Hoje. A pele “protegida de rugas ou de ferimentos, que carece da porosidade afetiva que caracteriza a pele humana”.
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Obrigado pela leitura!
Thiago! Por coincidência o texto tocou em alguns pontos da minha sessão de terapia. Acho que vou te levar pra análise, viu? Obrigado por isso!