Calma
Quando calmos, inspiramos e expiramos 15 vezes por minuto. Entra e sai dos nossos pulmões nesse minuto cerca de 8 litros de ar.
O cavalo, no mesmo minuto, faz suas tidal breaths (“respirações em maré”, bonito) de modo mais eficiente: em apenas 12 sessões ele inspira e expira 60 litros de ar.
O pulmão de um cavalo é assustadoramente grande.
Já pensei nas patas de um cavalo, nos olhos de um cavalo, nos joelhos de um cavalo, na coluna de um cavalo, no sono de um cavalo.
Nunca pensei no pulmão do cavalo.
Sei que certos animais têm alguns truques para respirar com mais calma. São movimentos a princípio contrafisiológicos. Antes de adormecer, por exemplo, o cachorro muda a respiração para ativar o nervo vago, o sistema parassimpático, os botões do corpo essenciais para alcançar o relaxamento. Podemos imitar esse movimento, e costuma dar certo. Inspirar pelo nariz até encher o pulmão; inspirar novamente de súbito, como uma leve roubada avisando ao pulmão que ainda há mais um pouquinho de espaço; expirar depois muito lentamente o ar que foi puxado, soltando tudo.
Repare no seu cachorro antes de dormir.
O golpe súbito ajuda a abrir possíveis alvéolos colados pelo estresse, e a expiração lenta, como é ensinado nos cursos de respiração, desacelera o corpo, dando voz aos reguladores de saciedade, repouso e digestão.
Repetir algumas vezes essa tríade respiratória (em inglês se chama physiological sigh breathing) faz baixar, sobretudo, a frequência cardíaca. Não difere muito de alguns pranayamas milenares. Inspirar mais rapidamente, expirar mais lentamente, em tempos que podem variar entre o clássico 4 segundos inspirando / 6 segundos expirando e - o meu predileto - 6 segundos inspirando / 12 segundos expirando.
Ambas, inspiração e expiração, pelo nariz.
O ser humano é o único animal que escolhe respirar pela boca.
O cavalo só respira pelo nariz.
Li em algum lugar que a fala é uma “respiração elaborada”. Para falar, portanto, temos que aprender antes a respirar de determinado modo; um modo que o cavalo, apesar daquele pulmão, não aprendeu.
Temos diafragmas mais desenvolvidos e com mais nervos do que o do macaco. A quantidade exagerada de nervos exige uma medula espinhal mais grossa na área do diafragma, e uma coluna vertebral mais larga também.
Equipados disto, desse tipo específico de anatomia, começamos a nos comunicar verbalmente.
Tenta-se datar a linguagem verbal pelos fósseis. Alguns acham que o corpo já estava pronto para falar 50 mil anos atrás. Outros acham que os neandertais, há coisa de meio milhão de anos, já tinham as ferramentas físicas necessárias para se expressar.
A dúvida é se eles precisavam falar. Se sabiam falar. Se queriam falar.
Será que temos dentro dos nossos corpos ferramentas que não conhecemos? Para que dois rins, duas glândulas salivares submaxilares, para que tantos órgãos em duplicidade como numa engenharia de avião?
Quem sabe minha glândula submaxilar esquerda, bizarramente mais desenvolvida que a direita, não me sirva à calma assim como o meu único diafragma ou os meus dois pulmões?
Ou quem sabe esta ansiedade…
Rembrandt.
Van Gogh.
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A palavra “calma” vem do latim tardio cauma,ătis, algo como “calor abrasador” segundo o Houaiss. De acordo com o dicionário, o latim pegou emprestado a palavra do grego kaûma, usado pela Igreja para designar “incêndio, calor do Sol”. O verbo em grego seria kaíō, que significa “incendiar, queimar”.
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Ideias que talvez desenvolva: pensei nos jogos de videogame em que, mesmo passando de fase, podemos continuar explorando o espaço, andando para trás pela fase vencida, navegando de certo modo por um cenário já morto, sem obstáculos, monstros, bichos, muros, grades et cetera. Me lembrei de Tomb Raider, Prince of Persia, The Legend of Zelda, Flashback e Super Mario Bros. Depois me lembrei de que no Mario há fases diametralmente opostas, nas quais a tela nos varre da esquerda para a direita, e a única opção é correr para a frente e superar, num improviso mestre, o desafio.
Existe para mim uma evidente relação entre o cenário morto, a fase vencida, e uma forma de sentir o passado; assim como existe uma relação entre a tela que não cessa e uma forma de viver o presente e o futuro iminente.
O cineasta alemão Harun Farocki tangencia isso tudo nas videoinstalações Parallels, especialmente no segundo seguimento.
Aos 41, tão jovem mas nem tão jovem, me sinto às vezes perdido demais, caminhando por cenários de fases pelas quais já passei.
Acho que é um sentimento comum.
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